Submundo e violência neuronal

Ano: 2023

De porte interdisciplinar, os artigos propostos nesta coluna concentram seus esforços na defesa do Estado de Democrático de Direito e no combate à violência contra a mulher. O foco debruça-se sobre as circunstâncias violentas e inconstitucionais, que permeiam as condições de trabalho e de vida da vítima do submundo adulto (sites eróticos). Nesse cenário, os meios de comunicação são cúmplices da barbárie: abraçam os porões da tortura e da regressão histórica, confundem violência contra a mulher com empoderamento da mulher, provocando uma devastação “não acomete somente o presente; entrega o futuro imediato aos deleites de uma corrosão irreversível” (TRIVINHO, 2021).

I – SOCIEDADE DO CANSAÇO E POSITIVIDADE TÓXICA

A “Sociedade do Cansaço” (2015), nomeada pelo filósofo coreano Byung-Chui Han, é compreendida pelo cansaço oriundo do esvaziamento da vida em prol da cultura do desempenho. De acordo com o autor, as métricas comerciais (avaliações, seguidores, curtidas, visualizações, e assim por diante) correspondem a um novo sistema de punição institucional, que objetiva definir hierarquias e combater o concorrente. Nesta cultura da alta performance, os indivíduos são sugestionados a se verem como empresários de si mesmos, a cobrarem a própria produtividade e eficiência, tornando-se vigilantes e carrascos de suas próprias ações:

Quem fracassa na sociedade neoliberal de desempenho, em vez de questionar o sistema, considera a si mesmo como responsável e se envergonha. No regime neoliberal de autoexploração, a agressão é dirigida contra nós. Ela transforma os explorados em depressivos (HAN, 2018, p.16)

Nesse contexto, as empresas transformam seus colaboradores em robôs que desconhecem seus limites humanos, e trabalham com a imposição de metas cada vez mais desumanas. Os efeitos colaterais desse discurso motivacional é a violência neuronal, que se dá por meio da “positividade tóxica” do estímulo, eficiência e reconhecimento social pela superação das próprias limitações. Essa sistemática traz como sintoma o esgotamento físico e psíquico, a depressão e a ansiedade como complementos básicos do abandono dos próprios limites emocionais.

II – O SUBMUNDO DOS SINTOMAS

De acordo com Marilena Chauí (2023), a mulher é ilusoriamente apresentada como empresária de si própria, mas subordinada à uberização do trabalho. Assim, o salário é substituído pela renda individual. Nessa perspectiva, a tragédia está no fato de que não se trata somente de uma trabalhadora pobre, mas de uma mulher cuja psique é alimentada pelo medo, pela perda da autoestima, e pela ilusão da meritocracia da culpa, da competição. Nesse esquema draconiano, a mulher é encorajada a seguir métricas comerciais perversas. Assim, é destinada à concorrência mortal entre os pares, o que destrói a possibilidade de sororidade.

No caso do submundo erótico, as vítimas também estão submetidas à tirania do desempenho máximo, da positividade tóxica e da violência neuronal. Entre as principais metas comerciais de uma produtora de conteúdo erótico na rede é possível citar:

  • As performances, os diálogos, as fotos e até mesmo os sorrisos das mulheres nos sites adultos são refém de diretrizes comerciais que objetivam a reprogramação algorítmica da sexualidade.
  • O tráfego de usuários dos sites adultos é redirecionado com base nos algoritmos e feeds hipersegmentados que visam atingir métricas comerciais das empresas.
  • As mulheres precisam aprender o que fazer para subir o engajamento,
  • Conquistarem seguidores e fidelizá-los para monetizá-los;
  • Adaptarem-se à rotina das publicações das fotos e vídeos com poses específicas,
  • Aprenderem a produzir stories diários, agendarem mídias, e assim por diante.

 Conforme demonstrado, a produção, circulação e oferta das performances eróticas na rede é um trabalho meticuloso. Portanto, é o oposto do exercício livre da sexualidade feminina.

Não sem motivos, os casos de depressão, transtornos afetivos de humor e burnout nas vítimas comprovam que há algo de desumano nesta violência neuronal (HAN, 2015). Entre os principais agravantes patológicos destacam-se: Transtornos Específicos da Personalidade (CID10XF60), com casos majoritários de Transtorno de Personalidade Histriônica (CID10xF60.4) e Transtorno de Personalidade Borderline (CID10xF60.3); Transtorno Afetivo Bipolar (CID10xF31); Transtornos Ansiosos (CID10XF41), com ênfase para casos de Transtorno de Pânico (CID 10xF41.0), Ansiedade Generalizada (CID10xF41.1), Transtorno Misto Ansioso e Depressivo (CID 10xF41.2); Transtornos Depressivos (CID10XF33); Transtornos de Alimentação (CID10x F50).

Assim, as vítimas são engolidas pela positividade tóxica do sistema. Com isso, as mulheres são esvaziadas dos seus afetos e desconhecem os seus limites. Como consequência de métricas comerciais cada vez mais desumanas, “o indivíduo se explora e acredita que isso é realização” (HAN, 2015).

III – INFANTILIZAÇÃO DO SUBMUNDO DA CIBERCULTURA

Entretanto, para camuflar a existência de uma classe trabalhadora submetida a condições insalubres — e inconstitucionais —, todos os anúncios publicitários enquadram-se no arco da “Fetichização imagética e idiotização tecnocultural”. O autor Eugênio Trivinho (2021) caracteretiza o fenômeno como franja da infantilização pós-industrializada da cultura:

O conjunto envolve, especificamente, imagens editadas ou retrabalhadas, não raro com função de meme, peça digital de violência simbólica desferida (e obliterada) sob a capa de chiste pretensamente inofensivo e que se irradia através de redes interativas. Sob colagem de fatores figurativos, sonoros e/ou textuais, extáticos ou em movimento (vídeos e gifs), esse mosaico implica menos os emojis, alfabeto icônico japonês para representar sentimentos particulares em correspondência digital (ibidem).

Ainda de acordo com Trivinho o objetivo de todos esses signos é cultivar “laços de afeto sob relativa garantia de empatia imediata, reação alegre e conforto emocional”. Para o autor, trata-se de uma fetichização imagética, relativamente padronizada que calcifica emoções em rota estética e reducionista. Do ponto de vista psicoemocional e da relação com a existência, Trivinho associa à “queda irrefletida de um pátio intelectual inteiro – mais um –, em ladeira subcultural conhecida: desafortunadamente, essa oferta imagética não deixa de (re)fomentar até mesmo uma idiotização tecnocultural tardia, egressa desde, pelo menos, a segunda metade do século 20”.

Na obra, “A Sociedade do Espetáculo” (1997), Debord define o espetáculo mediático como construção artificial e comercial de signos autoritários que mentem quanto ao valor do que representam. Para o autor, o palco mediático é uma ferramenta extremamente atrativa e imperativa para substituir valores e identidades, e, em seu lugar, implantar desejos e estereótipos de consumo com base em ideologias pautadas em diretrizes comerciais. Nessa órbita de fatores, observa-se o quanto o submundo reduz a potência do vínculo comunicativo a simples ideia de trocas de informação.

A palavra conexão vem do latim connectō, composto pelas raízes con– +‎ nectō que querem dizer “vincular-se com”.  No texto “Corpo e imagem: comunicação, ambientes, vínculos”, Baitello Jr. (2008, p. 100) esclarece que a comunicação é “uma atividade vinculadora entre duas instâncias vivas”, e não mera troca de informações. Sobre a temática, Ciro Marcondes Filho (2014, p. 590) reflete sobre os vínculos comunicativos em contexto mediático:

Nesse sentido também podemos considerar a contribuição do estudo dos vínculos comunicativos para um alargamento da compreensão sobre os meios de comunicação, entendendo-os como espaços (físicos ou simbólicos) nos quais essa rede de vinculação deve operar numa escala socialmente maior do que a da comunicação interpessoal, e refletindo sobre se esses meios têm ou não, de fato, desempenhado esse papel, ou se se tornaram meros espaços funcionais por onde transitam informações assépticas e vazias de sentido, apenas quantitativa e mercadologicamente consideradas.

Em continuidade ao pensamento de Ciro Marcondes Filho, a autora Malena Segura Contrera (2014) alerta sobre a diferenciação entre trocas comunicativas e relações comerciais:

É importante que façamos uma ressalva acerca do fato de que é a desconsideração do papel do vínculo para a comunicação que colabora na manutenção de uma visão empobrecida sobre o processo comunicativo, muitas vezes conferindo às trocas de informação seu aspecto central (…) Ao considerarmos os processos de vinculação, lançamos um novo sentido às relações comunicativas, evitando uma concepção de que trocas comunicativas se assemelham a meras relações comerciais e instrumentais, e chamando a atenção para a importância dos processos de significação constituídos nessas relações (ibidem, p. 354)

A citação da autora deixa claro que trocas de informação precificadas, tais como essas que ocorrem entre as vítimas internas e externas do submundo, não são práticas humanas de vinculação com o outro, mas de controle do outro. Além disso, é preciso esclarecer que não é possível pagar uma pessoa para fazer sexo “com conexão” com outra, pois o afeto não é uma mercadoria precificável, mas um sentimento genuíno.

 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste horizonte epocal, as tecnologias da comunicação estão intimamente conectadas ao mercado de tal sorte que as grandes empresas e seus investidores são os financiadores do desenvolvimento tecnológico. Com repertório cultural crítico é possível apreender que as empresas fabricam produtos a partir da captura de carências e necessidades humanas, seguida da sua transformação em mercadorias precificáveis. Entretanto, os meios de comunicação ocultam tanto sua ideologia quanto seus produtores, fabricando a ilusão de que não existe ninguém por trás da comunicação. Trata-se do princípio da hipnogenia, conceituado por Baitello Jr. (2008, p.97).

Ouça-se o lastro de humor grotesco no encorajamento das práticas de violência neuronal (HAN, 2015): o equívoco da época em curso consome sem reflexão crítica as performances hiper-reais do submundo adulto sem sequer cogitar que há um dilúvio de métricas comerciais, algoritmos e diretrizes publicitárias envolvidas naquelas supostas “produções amadoras” para “interações genuínas”.

Neste cenário, há uma sociedade imersa numa condição alagadora de insatisfação pessoal, repleta de sujeitos neuróticos e carentes de afeto, buscando a realização de seus desejos na rede. Assim, a reprogramação do imaginário fabricada pelo submundo não se trata de alienação total, mas de entregar ao sujeito o que ele procura no confronto com o vazio de si. Em outras palavras, o sujeito não está consciente da estrutura macro que o envolve, isto é, não entende sobre a engrenagem do submundo (não sabe como funciona o direcionamento do tráfego dos usuários para cada perfil de produtora de conteúdo, tampouco como funcionam os contratos de prestação de serviços, agendamento de mídia, comissão de plataformas, e assim por diante). Entretanto, não está totalmente alienado sobre o que faz na rede (existe satisfação momentânea). Sendo assim, a manipulação é do ponto de vista das forças macrossociais, mas individualmente, o sujeito está relativamente consciente da sua ação.

Entretanto, o adoecimento físico e psíquico das vítimas é uma resposta sintomática do corpo e do psiquismo da mulher que determina que há violência no submundo. Sobre o tema, James Hillman (1984) afirma que “o sintoma é o primeiro escudo da psique que desperta e que não quer mais tolerar nenhum abuso”.

Frente ao adoecimento, é possível desenvolver estratégias que minimizem o poder simbólico da reprogramação sobre as vítimas. Afinal, conforme defende Malena Segura Contrera (2021), “o imaginário não é um arquivo-morto de imagens”, visto que a imagem é um trabalho da psique, que envolve a consciência. Nesse sentido, a consciência crítica é a chave para o despertar das vítimas, aliviando-as dos sintomas da reprogramação ideológica do imaginário propositalmente provocada pelas pulsões perversas do submundo.