“A vida começa quando a violência acaba”.— Maria da Penha
O movimento “Agosto Lilás” refere-se à campanha de conscientização e combate à violência contra a mulher em alusão à Lei Maria da Penha (11.340), sancionada em 07 de agosto de 2006. O slogan de 2023 é enfático: “Mais do que ser contra, #épreciso denunciar“.
Abrangendo essas preocupações, vale considerar que para transformar é preciso informar. Nesta conjuntura, o artigo dedica-se ao esclarecimento dos conceitos objetificação e desumanização da mulher, com foco no combate à violência simbólica do submundo da cibercultura contra suas vítimas. Tratam-se de grandes estruturas de poder, controladas por proprietários ocultos, que propositalmente confundem violência contra a mulher com “interação com a mulher” em sites adultos.
Devido à gravidade histórica, a abordagem não se trata de uma descrição do fenômeno, mas de uma reflexão crítica. Evidentemente, a argumentação não é de cunho moral, mas social e político, em prol da defesa da democracia e dos direitos humanos. Objetiva-se demonstrar como a violência simbólica contra a mulher é embutida no imaginário social como ritualidade cotidiana.
I — VIOLÊNCIA SIMBÓLICA
Marilena Chauí (1985) apreende a violência simbólica contra a mulher como resultado da dominação da ideologia masculina sobre a feminina. Para a autora, a violência é definida como ação que transforma diferenças em desigualdades hierárquicas, tendo como objetivo a dominação do outro. A ação violenta, por sua vez, considera o ser dominado como “objeto”, invalidando-o como “sujeito”. Nessa dinâmica, o dominado é silenciado, perde sua autonomia e liberdade. Como consequência, torna-se dependente e passivo. Nesse escopo teórico, a liberdade é entendida como “capacidade de autodeterminação para pensar, querer, sentir e agir” (ibidem, p. 15).
Neste momento, é importante esclarecer que a violência nunca se auto-declara (TRIVINHO, 2007). Ou seja, não há aviso prévio e concordância entre as partes: o agressor não avisa a sua vítima que irá agredi-la. A vítima, tampouco, consente a violência do agressor. O processo da violência é invisível, isto é, apreensível somente pelos seus efeitos, e não como evento concreto. Para todos os casos, em todas as circunstâncias, a violência invisível e/ou simbólica é maquiada de modo que as suas vítimas fiquem confusas sobre a agressão que estão sendo submetidas. Em outras palavras, irradiar confusão é preceito fundamental para que o ciclo — invisível — da violência se cumpra.
O artigo “Tentáculos do submundo na superfície” trabalha a ideia de ideologia, proposta por Marilena Chauí (2023). De acordo com a autora, a ideologia é a expressão da dominação de uma classe sobre outra. Trata-se de um sistema de ilusões que desliza sobre a superfície da sociedade cujo objetivo principal é tornar a dominação invisível. O recurso da invisibilidade (reprogramação do imaginário) é fundamental por motivos óbvios: caso as vítimas se identificam como vítimas, os tiranos não iriam expandir seus tentáculos com a velocidade que a época em curso exige.
II — DA OBJETIFICAÇÃO À DESUMANIZAÇÃO
Em linhas gerais, objetificação e desumanização feminina são processos que banalizam aspectos subjetivos da mulher, invalidando seus pensamentos e sentimentos. Nessa violência, ocorre o esvaziamento de toda potência da mulher como sujeito. Apenas o seu capital erótico é valorizado. Em outras palavras, a mulher é reduzida aos seus atributos físicos, cuja legitimidade se dá pelos estereótipos físicos e comportamentais ditados pela cultura — patriarcal — vigente.
No caso do corpus deste artigo, a imagem da mulher é a mercadoria na rede. Na interação entre produtora de conteúdo erótico e usuário, a expectativa do consumidor é trocar informações com um sujeito-objeto que simule estar feliz acima de tudo. Por isso, o modo como as vítimas e sentem e o que pensam, não importa. Suas angústias, medos, inseguranças, vulnerabilidades é completamente ignorado. Neste retrato, o desamparo é a regência de um sentimento em massa.
Sendo assim, os conceitos referem-se especificamente à processos cuja característica determinante é a deslegitimação cognitiva e afetiva das mulheres para que se limitem a agradar afetiva e sexualmente os homens na rede. A troca de informações entre ambos é mediada por websites cujos “termos de uso” exigem:
- O direito vitalício da imagem das mulheres para comercialização posterior;
- Que a vítima concorde em ter seu direito a existência ofendido e não ajuíze ação contra a empresa;
- Aceite o uso ilegal da sua imagem feito por terceiros;
- Destrua provas contra a empresa caso necessário;
- Colaborar com as autoridades a favor;
- No caso de conflitos, é ameaçada a ter a sua intimidade exposta e se responsabilizar pelas despesas dos empresários.
Não há dúvidas de que o submundo violenta a mulher, deglutina os direitos humanos e caçoa da Justiça. Tendo em vista que objetificação e desumanização são fenômenos são distintos e relevantes para o Direito Digital, os processos merecem definição cuidadosa e contextualização com o mercado em análise.
Como ocorre a objetificação das mulheres pelos sites eróticos
A objetificação no submundo da cibercultura realiza-se com a imagem da mulher disponibilizada na rede com a intenção de suprir carências afetivas e sexuais do homem online mediante alguma remuneração financeira para tal. Observa-se que a produção erótica na rede (fotos, vídeos e textos) atende a uma demanda específica: o homem. Por isso, são desenvolvidos em prol de um objetivo específico também: satisfazer esse homem.
A lógica da objetificação é a lógica da instrumentalização do objeto: Não se espera que um objeto sinta e pense, mas que cumpra a função para a qual foi criado. No caso das pessoas apresentadas como mercadorias em catálogos de sites eróticos, o que importa naquela relação é a satisfação de apenas um dos lados, o do homem, que é quem está pagando pelo serviço.
Muitas vezes, os sujeitos objetificados até são tratados com cuidado, pois sua longevidade é importante para o consumidor, que se sente “proprietário” do “seu objeto”. Além do mais, às vezes os sujeitos-objetos são até mesmo “humanizados” e recebem “apelidos carinhosos”. Por isso, apesar do potencial cuidado ou carinho, existe objetificação, visto que os pensamentos e os sentimentos do sujeito-objetificado (no caso, a mulher) estão invalidados.
Como ocorre a desumanização das mulheres pelos sites eróticos
Em comparação à objetificação, a desumanização é um processo de invalidação da subjetividade da mulher muito mais grave. Nesse tipo de violência, a mulher é completamente destituída da sua dignidade em camadas muito profundas. Não há limites. Em oposição ao objeto que pode ser acariciado e cuidado para “uso” posterior, no caso da desumanização, a utilidade instantânea determina as ações. Tudo é válido.
No submundo, uma mulher exposta a condições desumanizadoras dia após dia vai sendo condicionada a se submeter a situações cada vez mais degradantes, o que inclusive inclui a violência física de instrumentos de torturas “interativos”. Tratam-se de objetos mecânicos que ficam instalados dentro do corpo da mulher e podem ser controlados pelo usuário por bluetooth. Esses instrumentos custam em média R$2.000,00 e as mulheres recebem apenas uma pequena porcentagem do valor enviado pelos usuários.
Enquanto as mulheres são violentadas, torturas e humilhadas, as empresas retém mais da metade da comissão do trabalho delas e lucram duplamente com a violência: os sites adultos têm parceria comercial com as marcas que vendem os instrumentos mecânicos de tortura. Ou seja, esse submundo erótico criou um mercado — que sequer existiria — embasados na violência contra a mulher.
III — SISTEMA DE CAPATAZIA DO SUBMUNDO
O funcionamento do submundo como instrumento feroz de reprogramação do imaginário social depende do alinhamento sistemático e progressivo da violência contra a mulher. Para tanto, o setor apresenta uma estrutura bem organizada que gira em torno da apropriação dos meios de comunicação. A mídia, nesse sentido, é cúmplice da barbárie.
Tendo em vista que proprietários dos sites adultos não medem esforços para se manterem ocultos, faz parte da sistemática contratar capatazes para proteger as empresas no escrutínio público. A presente pesquisa observou que o sistema de capatazia pode ser dividido em categorias distintas: ocultos e evidentes.
Como operam os capatazes ocultos dos sites eróticos
Os capatazes ocultos trabalham nos departamentos de marketing dos sites adultos e são encarregados de irradiar fake news nos meios de comunicação. Assim, a violência simbólica contra a mulher é anunciada como nada além de “possibilidade infinitas de prazer”, “diversão e interação” para ambos os lados. Desse modo, a naturalização dos processos de invalidação dos sentimentos e dos pensamentos das mulheres em prol da satisfação masculina são cuidadosamente embutidos no imaginário do tecido social.
Como operam as capatazes evidentes dos sites eróticos
As capatazes evidentes são as influenciadoras digitais e “coaches” (vendedoras de cursos online) que vendem a ideia de que objetificação e desumanização é liberdade e conexão emocional para as próprias vítimas. Propositalmente, utilizam-se do desvio semântico entre sobrevivência financeira (poder de compra) e “empoderamento feminino” (poder de escolha). Assim, a violência simbólica contra a mulher é embutida no imaginário das próprias mulheres como práticas sem maiores consequências.
Entretanto, é preciso esclarecer contrassensos fundamentais: (i) Nada que agrade aos olhos do patriarcado pode ser considerado empoderamento feminino; (ii) Não é conexão emocional se existe remuneração financeira pelo envolvimento entre as partes; (iii) Não é afeto se a relação é verticalizada e assimétrica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O compromisso do presente estudo com a defesa dos direitos fundamentais permite considerar o submundo da indústria adulta digital com maior criticidade do que de costume. O oligopólio cibercultural do submundo opera a partir de um conjunto de imperativos cuja a premissa básica é a violência contra a mulher celebrada como espetáculo distópico em tempo real.
A engrenagem desse modelo de negócios é uma ameaça à liberdade da mulher: dos mandantes ocultos aos capatazes (ocultos e evidentes) que irradiam confusões nos meios de comunicação (da massa, híbridos e interativos). O drama silencioso desse modelo de negócios abarca a zona de conforto dos tiranos: as discussões, disputas e conflitos estão no lodo da invisibilidade. A objetificação e a desumanização da mulher foi naturalizada como modelo de mundo.
Constatada a relevância da temática, chama-se atenção de todas as áreas da ciência, que pouco se deram conta formalmente da gravidade do fenômeno psicossocial que envolve a questã: SUBMUNDO É VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER.